Por que tantos reclamam da passividade geral da população frente aos descalabros cometidos pelos três poderes no país?

Por todo o país, muitas pessoas têm se mostrado indignadas recentemente, não apenas com as ações de governos (federal, estadual e municipal), bem como do Congresso e do STF, mas ainda, com a falta de mobilização da população – que, nos últimos anos, bateu panelas e marchou contra a corrupção e pelo afastamento da presidente reeleita em 2014.

A primeira questão que surge é: por que não se incluem?

É claro que ao se apontar uma situação como alheia, há a ilusão de colocar-se de fora, de exclui-se da mesma condição. Mas, se quem aponta uma falta de ação, não apresenta alguma proposta para mudar essa situação, não é também responsável pela inércia? Não está, do mesmo modo, esperando um comando que leve à ação?

A segunda questão é: de onde, ou de quem vem esse comando?

Todas as manifestações são invariavelmente promovidas por alguma instituição, de que ordem for. Uma das últimas passeatas bem sucedidas no Rio de Janeiro, como manifestação pela liberdade religiosa – e em reação a medidas da prefeitura e atos de vandalismo cometidos contra cultos de matriz africana – foi promovida ecumenicamente por entidades de diversas origens e práticas, mas teve pouca repercussão nos grandes veículos de comunicação. Não há exceção, organizadas por sindicatos, partidos, instituições, serão mais ou menos divulgadas de acordo com os interesses envolvidos na causa.

Começando com as manifestações pela destituição da presidente, em 2015 e 16, se alguém tinha dúvidas sobre a sua motivação – mesmo com a divulgação das gravações de conversas entre Sérgio Machado, Romero Jucá, Aécio Neves e Gilmar Mendes –, depois das articulações recentes entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário para a proteção de seus mandatos, o acobertamento de seus crimes e o benefício de seus patrocinadores (bancos, petroleiras, ruralistas), não há mais margem possível de erro. Está tudo muito claro. Conforme o enunciado.

Entre uma infinidade de medidas autoritárias tomadas pelo novo presidente, em proveito próprio e do grande capital: dívidas bilionárias com a receita federal foram perdoadas (só do banco Itaú, foram 25 bilhões), reformas trabalhista e previdenciária elaboradas contra os direitos dos trabalhadores, concessões para exploração do pré-sal leiloados por uma fração de seu valor, reservas indígenas e áreas de proteção ambiental violadas a ferro e fogo, no Congresso e no campo – onde ninguém vê.

E não vê porque não é de interesse dos meios de comunicação (locais e nacionais) denunciar o que ocorre em regiões onde o coronel e sua família são, não apenas, donos de jornais, rádios e TVs, como também, ministros, senadores, deputados, governadores, prefeitos, vereadores, juízes, que, junto com os seus asseclas, formam um núcleo de poder que vai sendo herdado por seus sucessores. Assim criaram-se bunkers, ao arrepio e fora do alcance da lei.

Quando confrontados em seus privilégios são capazes de retrucar coisas como: “tem que estancar essa investigação”; “tem que entrar com o Supremo, com tudo”; “tem que ser um que a gente mata antes de fazer delação”. E, o pior, de cumprir a ameaça: o candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais, senador e líder da oposição que paralisou os trabalhos do legislativo para forçar o impedimento da presidente, depois de acusado por diversos crimes, foi salvo pelos colegas (com a licença do Supremo) e pelo conselho de ética da casa; o juiz (Teori Zavascki) encarregado dos processos movidos contra ele morreu em um acidente de avião e o delegado responsável pela investigação do acidente foi assassinado. Não poderia haver exemplo mais claro sobre o poder das famílias que controlam o país.

A ramificação desses núcleos pelos três poderes da república (em todos os seus níveis) e pelos meios de comunicação (seu quarto poder) criou o estado de coisas vigente, onde os detentores do capital econômico-político violam constantemente leis e obrigações públicas, sem arcar com as consequências legais sobre os seus atos.

Foi com o patrocínio dessas poderosas organizações, e o apoio de intensa campanha promocional dos veículos de comunicação e redes sociais que a população foi levada aos protestos. E são, naturalmente, esses patrocinadores, os grandes beneficiários do que resultou do processo. Por isso, soa ingênuo o espanto com a atual passividade da população. A maioria foi envolvida pelo enredo da falência econômica e política do governo em 2014/15.

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A economia internacional é movida pelo grande capital conforme os seus interesses; é uma religião onde o lucro é deus. Um deus palpável, almejável, negociável. A política é sua aliada maior, o seu meio privilegiado de operação. Mas esse deus, na verdade, talvez não seja tangível de fato. O desempenho de um banco, por exemplo, é medido quanto à progressão da lucratividade. O lucro constante é pouco. Ganhar regularmente não basta. Há que se ganhar sempre mais, e que se engendrar uma maneira de multiplicar isso ao máximo. O ideal é o lucro elevado à sua própria potência. Considerando-se: lucro = L; deve-se almejar: LL.

Acompanhando a deflagração da crise econômica ocorrida em 2007/08, e os seus desdobramentos sobre economias fora do centro – como o Brasil, por exemplo – podemos observar como funciona o sistema. O que houve então está espantosamente retratado no documentário Inside job, que investiga os motivos da crise. No filme, os analistas das agências responsáveis pelo ranking – em graus de confiabilidade para investimentos em empresas, áreas, e países – não conseguem justificar as próprias avaliações anteriores à crise. Onde o filme termina, outro poderia começar, com o mesmo enredo, rodado no Brasil. O que o filme não mostra (porque disso não trata) é para onde foi transferido o lucro gerado com o esquema fraudulento de ranking.

O lucro da pirâmide que implodiu nos EUA e Europa – com as perdas de pequenos, médios e grandes investidores, os maiores (imensos) investidores, dotados de informações estratégicas e poder de influência sobre mercados, como sempre, lucraram – foi desviado para mercados acessórios, onde o esquema ainda teria fôlego para operar lucros crescentes (naturalmente, até a sua própria, e próxima, implosão).

O Brasil genial que estava driblando a crise que assolava as grandes potências do norte – e, consequentemente, o resto do mundo – era a nova invenção das agências de ranking de investimento. A mistura de uma ingenuidade ufanista com a propaganda da abundância levou o país a uma euforia poucas vezes vista em tempos recentes. Viramos os tais. E quem dissesse qualquer coisa em contrário era visto com desconfiança.

As consequências eram previsíveis – e já previstas, obviamente, pelos maiores investidores, que, invariavelmente, conseguem transferir recursos na hora certa, imediatamente antes da queda. Nenhum esquema baseado em graus de confiabilidade de investimento se sustenta sem uma estrutura econômica que justifique o expectativa positiva. A transferência de grandes somas entre mercados, aliada ao ranking, cria cenários, a médio e longo prazo, insustentáveis. A bolha esvaziou. Depois de lucros incríveis, os investimentos migraram de novo. De bola da vez, viramos carta fora do baralho sem entender quando se deu a mudança do jogo.

Caímos na real. Mais uma vez, o país foi entregue à instabilidade econômica, consequência retardada da crise internacional, e por esse atraso mesmo agravada com a implosão da bolha. Essa bolha transferida para cá gerou um grande equívoco na percepção da realidade do momento econômico no país e no mundo. E esse equívoco era necessário, ou não haveria lucro. Foi planejado e, oportunamente, insuflado por dois dos maiores e mais lucrativos eventos mundiais: a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, no país. Feliz coincidência!

As eleições que escolheram o Brasil e o Rio como sedes desses eventos ocorreram em outubro de 2007 e outubro de 2009, respectivamente. Casos de compra de votos entre membros dos comitês que decidem as eleições da FIFA e do COI vêm sendo fartamente revelados nos últimos anos. Os presidentes da CBF e do COB, à época e depois de décadas à frente dessas instituições, foram afastados e estão sendo processados judicialmente.

Dirigentes de entidades esportivas, patrocinadores e políticos, todos sempre ganham com esses hiper-eventos esportivos. Exceto as cidades-sede, que ficam com seus imensos elefantes brancos encalhados, frutos desse mecanismo gerador de lucros inconsequentes (obtidos por meio de práticas, ou cujo resultado desconsidera as suas consequências sociais e ambientais, imediatas e futuras).

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Não foi a população que foi espontaneamente às ruas pedir o fim da corrupção. Foi um movimento engendrado e bem organizado que a levou às ruas, por motivos que não se sabia bem quais, em 2013. Não eram apenas os vinte centavos (de aumento na passagem de ônibus). Foi quando apareceram grupos e organizações que estavam buscando espaço de atuação: Movimento Passe Livre, Vem prá rua, MBL, Mídia Ninja, black blocs. E foi um ensaio do que estava por vir. Novas manifestações proliferaram em 2014 contra a Copa, e contra a corrupção no governo e em empresas públicas, visando às eleições daquele ano. Após as eleições, em 2015 e 2016, passaram a promover, principalmente, o impedimento da presidente eleita. Já com o patrocínio de partidos de oposição, liderados por PSDB e PMDB, e de diversas instituições, notadamente, a FIESP.

O que se pode esperar de quem fez parte dessa articulação, conscientemente ou como inocente útil? Que batam panelas de arrependimento? Uma confissão de culpa, como se tivessem, eles próprios, promovido tais manifestações, e não servido como massa de manobra? Ingenuidade. Mesmo porque muito do que foi usado como justificativa para o impedimento pegou. De tão propagado, foi aceito como fato e grudou em grande parte da população que, não apenas toma o que vê e ouve na mídia dominante como verdade, mas nutre uma aversão renitente pelos movimentos sociais, e mais especificamente pelo Partido Trabalhista, que foi acentuada com a sua chegada ao poder, com as suas políticas sociais, e justificada pelos diversos erros e desvios admitidos em seu governo.

Como afirmou tragicamente, na época da revelação do mensalão, o então Presidente da República, o que o PT fez foi o que todos os partidos políticos sempre fizeram no Brasil. Verdade. Decepção. E, pior, a admissão da corrupção como corriqueira na política do país, que parece ter servido como uma senha para a continuidade e a replicação de esquemas semelhantes. Mas a aversão aos movimentos sociais é ancestral no país, parte formadora da nossa cultura, e encontrou na ocasião uma razão para a sua vazão.

A bolha artificial do país como bola da vez, que não poderia ser sustentada por muito mais tempo, com as escolhas para sediar a Copa e as Olimpíadas, ganhou sobrevida. O suficiente para garantir a transmissão de governo de um presidente carismático que, mesmo com o mensalão, manteve o apoio de grande parcela da população – sobreviveu à crise política, em seu partido e no governo, e à crise econômica mundial –, para uma presidente desconhecida, sem carisma nem poder de discurso.

Esse governo herdado, de continuidade das políticas públicas, por um lado, e de crescente necessidade de alianças e concessões a outros partidos e interesses, por outro, mesmo com a pressão exercida, externa e internamente, conseguiu chegar à reeleição. Mas aí foi longe demais. Sobretudo por que “com ela lá, não tem jeito, tem que ser alguém que possa estancar essa coisa toda”.

O resultado é o que estamos vendo, ou sofrendo. E, na realidade, não apenas aqui, mas em todo o mundo leis e governos são cada vez mais comandados pelas grandes empresas globais. Cargos governamentais, em todos os níveis, vêm sendo ocupados por grandes empresários das áreas de comunicação, entretenimento e religião.

O Estado deixa assim de ser laico ou justo. Uma vez que os seus ocupantes são lideranças em seus próprios cultos. Onde o objetivo final é o lucro, por meio da exploração da fé e da necessidade de fiéis e empregados induzidos a acreditar que, louvando deus e o lucro, um dia alcançarão a redenção. Empenhando o suor e a doação para o crescimento da empresa e da igreja, creem que irão merecer, finalmente, dinheiro e tempo para gastar no shopping e no templo.

A oratória de altar é encantatória e ameaçadora. Se não for assim, será muito pior: sem reino dos céus, sem dinheiro, sem emprego. Em nome disso, fazem o que querem com quem sustenta seus privilégios e obedece aos seus comandos.

Todos aguardando o chamado para as próximas manifestações.